Patrimônio Cultural e as Festas de Santo Antônio

13 de junho, parabéns Miguel Pereira pelos seus 126 anos de vida e 122 anos de Festas de Santo Antônio

 10/06/2023     Historiador Sebastião Deister      Edição 453
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Entende-se por cultura todas as ações por meio das quais os povos expressam suas formas de criar, fazer e viver. A cultura engloba tanto a linguagem com que as pessoas se comunicam, contam suas histórias e fazem suas poesias, quanto a forma como constroem suas casas, preparam seus alimentos, rezam e fazem festas. Enfim, a cultura popular, seja material ou imaterial, constituiu uma processo dinâmico que agasalha práticas cotidianas e seus produtos, valores, religiosidades, festividades, artesanato, idiomas, costumes, saberes e fazeres transmitidos de geração a geração e criados, recriados e aperfeiçoados ao longo dos tempos, tudo remetendo à história, à memória e à identidade dos indivíduos, consolidando, assim, o patrimônio cultural de um povo.

As pessoas fazem parte de diferentes grupos sociais, tais como os grupos das igrejas, o grupo de fundadores da cidade, o grupo dos comerciantes, o grupo feminino e o grupo político, entre outros. Assim, durante a sua vida, as pessoas constroem suas identidades ou se relacionam umas com as outras em diferentes contextos e situações.

A identidade de uma pessoa é formada com base em muitos fatores: sua história de vida, a história de sua família, o lugar de onde veio e onde mora, o modo como cria seus filhos, fala e se expressa, enfim, tudo aquilo que a torna única e diferente das demais. Algo semelhante acontece com os grupos sociais. As pessoas que os compõem compartilham histórias e memórias coletivas, visões do mundo e modos de organização social próprios. Ou seja, as pessoas estão ligadas por um passado comum irradiado pelas comunidades.

Portanto, a cultura e a memória são os elementos primordiais que fazem com que as pessoas se identifiquem umas com as outras, ou seja, reconheçam que possuem e compartilham vários traços em comum. Em suma, pode-se assegurar que sempre existe uma identidade cultural em todo e qualquer grupo social.

A preservação do patrimônio cultural significa, principalmente, cuidar dos haveres aos quais os valores humanos estão associados, isto é, velar pelos bens representativos da história e dos conhecimentos herdados por uma cidade. Tal salvaguarda objetiva a conservação de edifícios, monumentos, objetos e obras de arte e também manter vivos os usos, costumes e as manifestações culturais que fazem parte da vida das pessoas, criando em todas elas um profundo e inabalável sentido de pertencimento ao local onde vivem.

A ideia de patrimônio não está limitada apenas ao conjunto de valores materiais ou imateriais de uma comunidade ou população, mas também se estende a tudo aquilo que é considerado valioso pelas pessoas, mesmo que isto não represente interesse para outros conjuntos sociais.

 

Miguel Pereira - 13 junho 1897

 

No contexto de bens imateriais existentes em Miguel Pereira, é inegável que as centenárias Festas do Padroeiro Santo Antônio sempre exerceram forte apelo social, cultural, turístico e religioso sobre as pessoas. De fato, depois de sua oficialização e plena consagração pelo padre Leonardo Felippe Fortunato em 13 de junho de 1897, a Capela de Santo Antônio da Estiva passou a receber a graça de uma missa mensal e os louvores de ladainhas noturnas ao longo das semanas, sempre à luz de candeeiros e velas em função da não existência de energia elétrica na Serra.

 

1901 a 1ª grande Festa Junina

 

Já em 1901, os moradores da vila e sua comunidade religiosa trataram de promover a primeira grande festa junina em honra do seu Padroeiro. Essa comemoração, surpreendente e original, transformou-se em um extraordinário acontecimento para aquele povoado até ali desprovido de qualquer espécie de lazer. Com bandeirinhas obtidas pelo recorte dos mais inverossímeis tipos de papel colorido, o povo ornamentou as esburacadas ruelas próximas da ermida consagrada ao Santo e decorou a capela e sua pracinha fronteiriça. Lampiões de querosene ou carbureto por certo iluminavam o interior sereno e hierático do singelo templo, em cujo despretensioso altar de madeira rústica e pedras graníticas agasalhava-se, em rendas e fitas, a bela imagem realçada em sua quietude sacrossanta pela translúcida luz de velas votivas e esperançosas.

Lá fora, no pátio empoeirado, mas banhado por um luar de bem-aventurança, crepitava uma convidativa fogueira destinada a amenizar o frio implacável do inverno serrano e tostavam-se batatas e milho naquelas labaredas reconfortantes. Pelas barraquinhas assimétricas e toscas, armadas com o bambu farto e vigoroso que medrava pelas colinas adjacentes à vila, comercializava-se aguardente de cana em canecas de ágata, crestava-se churrasco em fogareiros a álcool, consumiam-se pamonhas, pastéis, bolos e torresmos vendidos por um ou outro barraqueiro, leiloavam-se no coreto da pracinha alentadas novilhas doadas por fazendeiros que já faziam da Estiva um ponto de referência para os seus negócios.

Os trigueiros bolinhos de mandioca, o chocolate quentinho, os pãezinhos amorenados, o perfumado quentão à base de cachaça, as brevidades delicadas, as cocadas úmidas e caprichadas, o chouriço e as linguiças repassadas nas brasas crepitantes mostravam-se petiscos excêntricos e deliciosos, disputados como um manjar por homens enfatiotados, por mulheres garbosas e bem maquiadas e por jovens sobressaltados por aquele burburinho incomum e desconhecido, posto que feliz e estimulante. Por sua vez, a molecada de calças curtas e suspensórios de couro cru brincava de pique-esconde em torno das barracas coloridas ou então se esgueirava, com ruidosas peraltices, pelas vielas naufragadas em uma penumbra de mistérios e aventuras.

Dessa forma espontânea, diferente e originalíssima, sem grandes formalidades ou planificações, a pioneira população da Estiva instituía para sempre as festividades do Dia do Padroeiro Santo Antônio e consolidava um evento comunitário e religioso mantido de maneira ininterrupta em nossa cidade há exatamente 122 anos.

Com o passar dos anos, as festividades adensaram suas atrações: bandas de música no coreto tocando marchinhas, forró e dobrados militares, danças de quadrilhas juninas e barraquinhas oferecendo iguarias como maçã do amor, curau, pé-de-moleque, pamonha, cocada cremosa, canjica, paçocas, bolo de milho, bolo de fubá, enfim um cardápio irresistível complementado por uma boa xícara de quentão ou por uma média fumegante de chocolate... e para a criançada levantava-se o pau-de-sebo com um prêmio na sua extremidade e pequenos quiosques com jogos infantis, sem falar no tradicional Bolo de Santo Antônio com quase dois metros de comprimento com dezenas de alianças escondidas nas fatias vendidas a população.

Infelizmente, tudo isso acabou. As festas juninas perderam seu encanto engolfadas por atrações alienígenas que nada acrescentam ao nosso folclore, as bandas de música perderam espaço para grupos musicais de gosto absolutamente duvidoso e as tradicionais e coloridas barraquinhas de guloseimas nada mais oferecem a não ser alimentos salgados, bebidas variadas, roupas masculinas e femininas, bijuterias e produtos "importados" bastante discutíveis. Permanecem, para os religiosos, as missas e outros rituais que ainda colocam o Padroeiro em relevo.

E para aumentar ainda mais a consternação de reconhecer o desaparecimento de um patrimônio cultural e histórico da nossa terra, basta lembrar que o próprio dia do Padroeiro - 13 de junho - configura o aniversário de fundação da cidade, data absolutamente ignorada tanto pelos seus habitantes quanto pelas autoridades públicas. De qualquer modo, parabéns Miguel Pereira pelos seus 126 anos de vida e 122 anos de Festas de Santo Antônio.