Apogeu e queda da Sociedade Força e Luz Vera Cruz

Os primeiros e pesados equipamentos da empresa foram transportados, até o local dos serviços, às custas de longas e morosas filas de carros de bois

 04/08/2023     Historiador Sebastião Deister      Edição 461
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A união dos amigos Ângelo Lagrotta e Edmundo Peralta Bernardes deu então origem à empresa Bernardes, Lagrotta e Cia., inaugurada em 13 de dezembro de 1926. Após seus estatutos publicados em Diário Oficial de 29 de junho de 1927, instalou-se em Paty do Alferes a Sociedade Anônima Força e Luz Vera Cruz, Concessionária da Iluminação Pública e Particular em Governador Portela, Professor Miguel Pereira, Paty do Alferes e Avellar e Administradora da Usina Hidrelétrica de Vera Cruz, na Linha Auxiliar.

A titulação de Vera Cruz para a concessionária fundada não encontra, entretanto, uma explicação muito lógica se levarmos em consideração que Vera Cruz, logradouro tão distanciado de Paty do Alferes, era um topônimo que designava uma grande área muito mais vinculada a Miguel Pereira do que a Paty, exceto, talvez, pelas suas notáveis raízes históricas ligadas diretamente à Fazenda de Nossa Senhora da Piedade, berço da colonização de grande parte do território serrano. As informações a respeito da opção por esse nome são um tanto desencontradas, mas todas levam à mesma conclusão: aquela denominação fora uma escolha muito pessoal do Dr. Lagrotta, que durante a construção da Usina de Manga Larga já imaginava erguer uma subsede em Vera Cruz, localidade que ele visitara tempos antes e na qual vislumbrara imensas potencialidades energéticas nas fortes águas do rio Santana. Assim, projetando outras atividades para o futuro - já que pensar bem à frente era uma particularidade das mais interessantes em seu irrequieto caráter -, resolvera ele instituir uma empresa com tal dístico, intuição que se revelou absolutamente adequada, uma vez que depois da trágica enchente de 1945 apenas a localidade de Vera Cruz se viu contemplada com os benefícios de uma total reconstrução, tendo a Usina de Manga Larga desaparecido para sempre em meios aos escombros arrastados pela enxurrada que devastou várias áreas de Miguel Pereira e Paty.

 

Em Paty, na Usina na Manga Larga, é a 1ª a gerar energia na região

 

Recebendo a colaboração de outros empresários e acelerando as obras da usina na Manga Larga, os diretores da Companhia provaram aos patienses e miguelenses ainda céticos a seriedade daquele revolucionário projeto quando fizeram desembarcar na vila os primeiros e pesados equipamentos da empresa, transportando-os até o local dos serviços às custas de longas e morosas filas de carros de bois alugados junto aos vários sitiantes de Paty. Todo aquele transporte inédito apresentou-se lento e extenuante, além de sacrificado e bastante caro. Afinal, os sofisticados aparelhos da usina necessariamente deviam chegar a Paty pelos comboios puxados pela maria fumaça, visto que a região ainda não dispunha de estradas de rodagem adequadas ou de transporte rodoviário capaz de subir as colinas com cargas tão pesadas e de dimensões tão avantajadas. Somos levados a imaginar, hoje, como deve ter sido penoso e cansativo retirar dos vagões aquelas turbinas, dínamos e outros apetrechos imensos, desajeitados e tão estranhos à população e o quanto de paciência e obstinação movia aqueles homens perseverantes ao conduzir, em vários viagens, os carros de bois desde a estação ferroviária até o local da usina, num percurso aproximado de apenas um quilômetro e pouco, é verdade, mas que demandava algumas horas de sacrifício estoico de operários e animais ao longo de buracos e  aclives empoeirados.

Não obstante todas as dificuldades enfrentadas pela empresa, já em 13 de dezembro de 1926 a Sociedade Anônima Força e Luz Vera Cruz iniciava a produção de energia elétrica para Paty do Alferes, acolhendo em sua festa de inauguração os empertigados diretores da companhia e os aristocráticos descendentes dos saudosos barões do café, que orgulhosamente envergavam seus brancos ternos de puro linho e acetinados coletes de cujos bolsos pendiam belas correntes prateadas a sustentar preciosos e moderníssimos relógios de ouro.

Pelo seu braço treinado, conduziam eles as impolutas senhoras e senhoritas da sociedade patiense, as quais, trajando longos e vaporosos vestidos de musselina e rendas, faziam questão de exibir para os demais cavalheiros os seus notáveis chapéus de penas e tules, cuja delicadeza e elegância por certo provocavam suspiros de admiração de alguns solteiros ainda disponíveis e sussurros de inveja ou despeito de outras madames de gosto menos requintado. Em meio ao burburinho dos funcionários e à turba de convidados oficiais, com certeza movimentavam-se algumas damas de origem menos nobre a exibir longas piteiras fumarentas ou colares de muitas voltas em seus pálidos pescoços, estes deixados à mostra pelo corte sumário das vestimentas menos rebuscadas trajadas pelo povo mais simples do lugar. Aqui e ali, o arrastar de sandálias ou chinelos e o ruído típico de tamancos pelo chão batido de saibro denunciavam a curiosidade da plebe que, entre cochichos e risinhos nervosos, levantava fortes suspeitas quanto à eficácia daquela parafernália incompreensível e quase grotesca de tão feia.

Paty do Alferes gera energia

Após os inflamados e retumbantes discursos proferidos pelos diretores da companhia, e certamente em meio a centenas de abraços efusivos e solenes apertos de mão concedidos aos presentes pelos inevitáveis políticos de plantão, os nobres convidados e os curiosos de sempre extasiaram-se diante da lâmpada-piloto que lentamente iluminou o festivo ambiente com sua luz mortiça, amarelada e indecisa, como se fora um pequeno farol que a todos mostrava o caminho do progresso e do futuro de Paty do Alferes. Na auspiciosa noite daquele dia memorável, ninguém na velha e radiante Paty permaneceu em casa. Seus habitantes, eufóricos e orgulhosos por aquele feito prodigioso, fizeram questão absoluta de vir para as ruas vestindo suas roupas domingueiras e bem passadas a fim de se posicionar sob os poucos postes de madeira já espalhados por algumas ruas centrais da vila, os quais sustentavam aquelas incríveis luminárias ainda bruxuleantes, posto que absolutamente admiráveis: inspirados por aquele brilho inesperado e espantoso, os moradores da pioneira Vila de Nossa Senhora da Conceição de Serra Acima da Roça do Paty do Alferes, assim como diversos outros ilustres personagens convidados de Lagrotta e Edmundo Bernardes, teciam fartos e elogiosos comentários à novidade, já elaborando planos para a prosperidade que se avizinhava radiante para sua terra. Muitas famílias recepcionavam alegremente os amigos que chegavam de Miguel Pereira e de Avelar em charretes coloridas ou montados em cavalos impávidos e bem tratados, todos atraídos por aquela notícia alvissareira e irmanados numa festa formidável e transbordante de vaidade e orgulho diante do notável feito que sua cidade lograra alcançar.

 

IMAGEM: Funcionários da Cia. nas matas do Tinguá em 1927

 

Na próxima edição: Apogeu e Queda da Sociedade Força e Luz Vera Cruz - Parte 4