Apogeu e queda da Sociedade Força e Luz Vera Cruz - Final
O sistema de cogestão entre a Light e a Sociedade Anônima Força e Luz Vera Cruz foi cancelado no ano de 1967, quando aquela empresa encampou de vez a usina miguelense, desativando-a
15/09/2023
Historiador Sebastião Deister
Edição 467
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Mesmo com tanta demanda
de energia, Miguel Pereira e Paty não tiveram diminuídas suas quotas de
eletricidade, até porque após a flageladora enchente de 1945, a Usina de Santa
Branca, restaurada e ampliada, deixara de enviar sua produção para Petrópolis -
já atendida por outras empresas - e passara a vendê-la diretamente para a
Sociedade Anônima Força e Luz Vera Cruz, que assim supria sem maiores problemas
as necessidades de tantas cidades serranas. É óbvio que a intensidade da luz e
a amperagem da corrente não poderiam ser comparadas à qualidade da energia dos
nossos dias. Por vezes, as cidades ficavam repentinamente às escuras, os rádios
de súbito tornavam-se lamentavelmente mudos, ler à noite era uma tarefa quase
impossível e passear ou namorar pelas ruelas depois da vinte horas significava,
com desusada frequência, encontrar-se envolvido pela escuridão inibidora e
gelada do inverno ou então cercado pelo fantasmagórico brilho de vagalumes
inquietos ou pelo denso coaxar de sapos incansáveis. Nada disso, entretanto,
abatia o ânimo e o entusiasmo dos diretores da Companhia Vera Cruz ou liquidava
a paciência e a resignação dos bravos cidadãos serranos, cuja alma orgulhosa
regozijava-se ao lembrar os complicados sacrifícios que todos tinham enfrentado
para reconstruir suas casas, suas vilas e suas usinas de força, retirando do caos
um novo alento de vida.
Os
empecilhos confrontados pela empresa e os desconfortos de seus usuários
perduraram até 25 de julho de 1953, data em que a Light passou a comprar a
energia produzida por Vera Cruz. O resultado de tal convênio foi uma sensível
melhoria da carga elétrica graças à instalação de equipamentos modernos e
eficientes nas usinas da região e em razão da distribuição pela serra de
numerosos transformadores mais potentes e de capacitação energética bem mais
eficaz, além da multiplicação de postes e luminárias por dezenas de ruas de
nossas cidades.
O
sistema de cogestão entre a Light e a Sociedade Anônima Força e Luz Vera Cruz
foi cancelado no ano de 1967, quando aquela empresa encampou de vez a usina
miguelense, desativando-a e trazendo
para a Serra do Tinguá a corrente mais constante e confiável gerada pela usina
de Ribeirão de Lajes.
Além do
Dr. Ângelo Lagrotta e de Edmundo Peralta Bernardes, não se pode omitir outros
nomes que deram sua expressiva parcela de colaboração para o total
desenvolvimento da Sociedade Anônima Força e Luz Vera Cruz, fossem dirigentes
ou simples operários braçais, e dentre eles podemos aqui recordar: o Dr.
Machado Bitencourt (na presidência da Companhia); Clemente José Monteiro e Luís
Vianna (na Gerência da Usina de Vera Cruz); Abílio Casa Nova (na Chefia dos
Serviços Técnicos); Lauro de Barros e Antônio Ramos da Silva, o Antoniquinho
(na Administração dos Escritórios de Miguel Pereira); Ernesto e Dario
(respectivamente Chefe de Operações e Auxiliar de Serviços Gerais na Usina de
Vera Cruz); Henrique d'Ávila, Cecílio e Humberto "Corcunda" (responsáveis
diretos pela manutenção das linhas aéreas, cuja presença em Miguel Pereira, a
andar de um lado para outro com uma escada às costas e um berrante capacete
amarelo na cabeça, tornou-se quase um símbolo vivo da Companhia), além de
dezenas de outros zelosos funcionários como Nelson, Geninho, Gervásio, Wilson
Brasil, Benjamim, Lígia Bernardes, Osmarina, Geny e Mello, este o cobrador das
contas de casa em casa, cuja desagradável missão o expunha diariamente às
reclamações e aos impropérios de alguns moradores menos pacientes, mas para os
quais ele sempre tinha uma resposta ácida na ponta da língua em defesa de sua
amada empresa.
Esses
homens decididos - coadjuvados por tantas mulheres apreciáveis, cujos nomes
ainda não foram apagados pelos cruéis preceitos do tempo -, e outros laboriosos
trabalhadores anônimos ou menos conhecidos pelas novas gerações de miguelenses,
jamais se furtaram à insana tarefa de escalar colinas arrastando postes às
custas de seus próprios braços ou então devassar matas sombrias e desafiadoras
para, entre suas árvores, esticar fios, instalar "espias", transformadores e isoladores, enfrentando sem temor
sol e chuva, espinheiros e urtigas, mosquitos e calor, encostas cansativas e
grotões ameaçadores, declives ásperos e águas fétidas e empoçadas, teias de
aranha insuspeitas ou por vezes os rugidos de uma jaguatirica incomodada.
Um dos
exemplos mais notáveis desse hercúleo trabalho verificou-se na década de
quarenta, quando uma fábrica de papel necessitou da energia produzida em nossa
serra para acionar suas máquinas nas proximidades de Belfort Roxo. As equipes
da Sociedade Anônima Força e Luz Vera Cruz galgaram então as montanhas de Vera
Cruz, atingiram as colinas que circundam o Lago das Lontras, desceram
cuidadosamente o Tinguá ao longo da centenária e abandonada Estrada do
Comércio, atravessaram as incríveis e históricas ruínas de Santana das
Palmeiras, fenderam a selva intocada e úmida, atingiram a Baixada Fluminense à
altura do Pilar, já no município de Duque de Caxias, e a partir dali fincaram
seus postes em direção a Éden, Coelho da Rocha, Belfort Roxo, Miguel Couto,
Vila de Cava, Tanguá, Posse e Três Corações, contornando as áreas periféricas
de Nova Iguaçu e enfim derrotando não apenas as montanhas do Tinguá, mas
também a incredulidade de muita gente
que considerava tudo aquilo uma aventura sem maiores consequências e
absolutamente inexequível. Dessa forma, a velha empresa de Lagrotta concluiu um
trabalho em tudo inimaginável, cujo labor por vezes exigia até um dia inteiro
para a simples colocação de dois ou três postes em meio ao milenar emaranhado
dos cipós vigorosos e troncos magníficos da floresta.
Quantas
vezes tais homens praticamente invencíveis precisaram fazer uma posteação pelas
escorregadias e traiçoeiras escarpas daquelas serranias, até ali senhoriais e
quase inacessíveis, desafiando os aclives resvaladios e as fímbrias compactas
de uma vegetação quase intransitável? Que dores e sofrimentos martirizaram o
corpo de cidadãos tão intimoratos? Que pensamentos de angústia povoaram suas
mentes, e quanto de fome e sede tiveram eles de suportar para levar a cabo a
missão que a si mesmos propunham concluir com êxito, ou quanto valeria hoje o
trabalho desses intrépidos protagonistas de nossa História? Impossível avaliar.
O que
movia tais homens não era apenas a perspectiva de lucros fartos ou imediatos. Havia,
em suas mentes e em suas almas, um profundo sentimento de responsabilidade e uma
perene chama de amor pelo trabalho que executavam, e essas emoções revestiam
seus atos mais cotidianos com um inquebrantável desejo de promover a
prosperidade da terra que tinham escolhido para viver. Hoje, analisando tal
época sob a moderna luz da tecnologia, somos obrigados a reconhecer que sua
coragem e obstinação por vezes beiravam a insânia e criavam riscos
incalculáveis em suas sacrificadas andanças pelas grotas escuras e veredas resvalantes
daqueles outeiros intermináveis. Porém, não fossem tais homens o que foram -
arrojados, visionários, perseverantes e quase insensatos - talvez não
tivéssemos agora os município felizes, progressistas e bem estruturados onde
nos é dado viver em paz. A têmpera, a intrepidez e a determinação desses personagens
únicos do nosso heroico passado não podem ser menosprezadas, esquecidas ou
simplesmente apagadas da história de nossa região, pois Miguel Pereira e Paty
do Alferes devem uma imensa parcela daquilo que agora possuem à tão olvidada e
desconhecida Sociedade Anônima Força e Luz Vera Cruz que, trazendo para nossa
terra os benefícios da energia elétrica, acabou por marcar, mesmo sem saber, a
linha divisória entre os resquícios da era pós-imperial e os tempos modernos da
Serra do Tinguá.
Imagem:
um dos prédios da Cia. na localidade de Santa Branca, Miguel Pereira.
Na próxima edição: Banda Marcial - Beleza Que ficou na Saudade