A Fazenda da Luz
Memórias de Paty do Alferes - 01
12/01/2024
Historiador Sebastião Deister
Edição 483
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A trajetória da Fazenda do Tinguá, conhecida como
Fazenda da Luz após os anos 1950, apresenta fortes ligações históricas, sociais
e econômicas com a cidade de Paty do Alferes e, principalmente, conexões
familiares com muitos de seus antigos moradores. Na verdade, as atividades da
propriedade envolveram ações comunitárias ao longo de períodos bem distintos
com base nos trabalhos de três grupos humanos pioneiros: a estirpe Kurt Gies,
dos primórdios do século XX até 1949; a linhagem de Domingues Corrêa, desde
1950 até 1963 e, por fim, a família Corrêa Ramos, no interregno 1963-1970.
É importante lembrar que no intervalo 1840 / 1949
aquele vasto latifúndio, acostado ao famoso Caminho Novo de Minas, aberto pelo
sertanista Garcia Rodrigues Paes nos albores do século XVIII, apresentava a
titulação Fazenda do Tinguá. Com efeito, no ano de 1840 o fazendeiro Francisco
Ignácio Barbosa vendera a propriedade para Felippe José Dutra, cujo filho
Joaquim Antônio Dutra a repassaria, em 1855, para José Ignácio Corrêa Tavares
que, por seu turno, negociaria todas as terras com o coronel Manoel Francisco
Bernardes no ano de 1882. Não existe um documento de comprovação a respeito do
repasse das terras por parte do coronel Bernardes diretamente aos Gies, mas é
crível o fato de que, já no advento da centúria XX, a imensa propriedade se
encontrava em mãos da família Kurt Gies, época em que se iniciou a construção
da casa grande destinada a abrigar, em um plano inicial, um hotel campestre.
Todo complexo fazendário ainda compreende uma área
de 127.600 m2, com a casa grande circundada por extensa vegetação natural
e por imensos eucaliptos centenários, provavelmente plantados no início do
século XX, a julgar pelo seu porte imenso. O prédio principal, configurando a sede
da fazenda, foi erguido com tijolos bem maciços (o que, provavelmente, indica
uma construção mais contemporânea e não tão antiga quanto as grandes fazendas
de café do Vale do Paraíba) coberto por telhas francesas.
Sua disposição interna apresentava diversos dormitórios,
duas grandes salas dispostas em dois pavimentos, sendo que a superior ainda
mostra a linearidade típica de um espaço familiar voltado para as refeições da
família e a inferior as características peculiares dos espaços de recepção de
visitantes. Tais salões conectavam-se às alas de repouso por longos corredores
assoalhados, varanda circundante totalmente telhada e vários sanitários. Os
aposentos mais íntimos intercomunicavam-se graças a uma pequena escadaria de
madeira, agora desaparecida. Na parte posterior da casa-sede, observa-se também
o restante de um antigo conjunto de modestas casas destinadas aos colonos da
fazenda e, com certeza, aos demais empregados de casa a dentro. No entanto, em
nenhum ponto da vasta propriedade surge uma pista ou qualquer vestígio
indicativo de que aquele complexo residencial tenha se valido da escravatura
para suas atividades.
Cerâmica
Sacoman
Outra peculiaridade importante na construção da casa
grande, que apesar do tempo pode-se ainda perceber, é a presença de acabamentos
em terracota da empresa Cerâmica Sacoman S/A (muito conhecida e
procurada entre 1895 e 1956), fundada pelos irmãos Antoine, Henri e Ernest
Sacoman, oriundos da cidade francesa de Marselha. Instalada em Osasco, São
Paulo, a fábrica produzia as peças conhecidas como telhas de Marselha. Os
irmãos foram diretamente responsáveis ela popularização do que até hoje é
conhecido como telhas francesas que, rapidamente, acabaram substituindo as antigas
e pesadas telhas coloniais moldadas em coxas de escravizados. Assim, a cerâmica
de tom avermelhado se tornou uma característica das construções do início do
século passado. Por conseguinte, o que se verifica na Fazenda da Luz é
exatamente isto: todo o telhado e o piso da varanda que envolve a casa grande vieram
da empresa Sacoman, indício inequívoco de que a propriedade foi erguida nas
décadas inicias do século XX e não no período de café do Vale do Paraíba.
Colônia
de Férias do Colégio Cruzeiro
Sabe-se que a propriedade, no decurso dos anos
entrantes de 1900, serviu de base para uma Colônia de Férias (Landschulheim) do
Colégio Cruzeiro, do Rio de Janeiro, educandário alemão fundado em 1862 que, a
propósito, continua em atividade na cidade carioca.
Em 1950 a Fazenda do Tinguá foi comprada pelo
português Custódio Domingues Corrêa, casado com a brasileira Aurora Graça Corrêa,
ele de origem portuguesa e ela, de terras paulistanas. Domingues era hoteleiro,
além de empresário de sucesso no ramo de construção civil. Trabalhador
incansável e idealista por excelência, administrava seus negócios a partir de
Nova Iguaçu, onde a sede de seus empreendimentos localizava-se no Bairro da
Luz. Ele próprio gostava de dizer que tal palavra tinha o dom de "abrir caminhos, enxergar além e ser
visionário". Por esse razão, não fez por menos em Paty do Alferes: ao
adquirir a grande propriedade, fez questão de nela apor o título de Fazenda da
Luz.
Todas as intervenções estruturais e construções
complementares da fazenda foram obra de Custódio Domingues Corrêa,
destacando-se aí a grande casa chamada pela família de hotel mas que, na
realidade, servia como abrigo e lazer apenas para familiares, amigos e
convidados. Eram 18 quartos decorados com cenas místicas que procuravam
valorizar a vida no campo. Na época, não se pensava no dito "hotel" como
hospedagem para pessoas fora do círculo familiar dos Corrêa, mas de qualquer
forma sempre havia muito circularidade humana pelo local, uma vez que a
família, além de numerosa, costumava trazer muitos amigos do Rio de Janeiro
para passar dias em Paty do Alferes.
Mais tarde, após a morte do Custódio (1963), sua
filha Maria de Lourdes Corrêa Ramos (1928-2018) assumiu a fazenda
transformando-a em um hotel batizado, naturalmente, como Hotel Fazenda da Luz. Dinâmica
e empreendedora, D. Lourdes buscou valorizar especialmente o estilo
descontraído e leve da vida no campo, tanto que, em um jornal do Rio de
Janeiro, ela sugeria "(...) Transforme o
Hotel Fazenda da Luz, em Paty do Alferes, em sua casa de campo... Clima europeu
e cidade e hospedagem 100 familiar. Informações pelo telefone 37-0167(...)"
De fato, o hotel experimentou um período de intensa
movimentação, com uma frequência expressiva de visitantes, e sua participação
nas atividades sociais de Paty criou em muitos moradores uma profunda memória
afetiva por aquele recanto verdejante e alegre, tanto que ainda hoje alguns
moradores mais antigos relembram a fazenda com nostalgia e muita saudade.
Com o tempo, entretanto, várias injunções familiares
e econômicas fizeram com que a Fazenda da Luz enfrentasse circunstâncias administrativas
e econômicas inesperadas, além da concorrência imposta por outros
estabelecimentos de acesso mais fácil e rápido. Eventuais desacordos familiares
também levaram os descendentes de D. Lourdes a abdicar da propriedades, e assim
a histórica fazenda mergulhou no ostracismo.
Felizmente, a Prefeitura de Paty resolveu, em 2021,
adquirir todo o complexo fazendário, objetivando ali implantar um parque
natural e, possivelmente, um museu a céu aberto que integre sua ambiência a atividades
ecológicas, patrimoniais e sociais. Segundo o pesquisador Coco Barsante, o
território da Fazenda da Luz é propício a estabelecer fortes laços entre a
memória urbana do município, o turismo rural, o ambiente natural, a bela história
local e a lembrança dos personagens que vivenciaram uma das épocas mais férteis
de Paty do Alferes.
Na próxima edição: O Casarão-Museu Vila do Alferes - Parte 2